quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Espasmos.



Contendo-se para não perder a voz, a cantora soltava suas últimas notas daquela ópera e caía ao chão, sua personagem mortificada. Se ela pudesse escolher, teria morrido ali mesmo, junto de sua personagem. Seu túmulo seria sua arte e seu legado seria sua morte.
Assim que os aplausos cessaram e ela finalmente pôde fugir daquele palco, das reverências e dos outros cantores, se trancou no camarim com suas rosas e a camisola branca da defunta do palco. Uma profunda dor tomou conta de seu peito e ela jogou para fora toda a agonia que viera segurando desde o primeiro ato. Tossiu, tossiu e tossiu, até que o sangue jorrasse no lenço. Tossiu mais e o sangue tornou carmim a camisola.
Tossiu novamente e o gosto de ferro provindo do sangue se misturou ao sal das lágrimas. Ela gemeu de um jeito esganiçado, dolorido, e caiu de joelhos. Soltou o ar bruscamente e sentiu seu peito latejar. Debruçou-se na cama e pegou uma das rosas do buquê, beijando-a. Unia os tons vermelhos de sua vida em um único gesto.
Chorou até que alguém lhe bateu à porta. Recusou-se a abri-la, mas a insistência da voz que vinha do lado de fora era mais forte do que sua própria coragem de morrer sozinha. Arrastou-se então até o mais próximo que pôde e girou a chave dourada. A maçaneta virou e a mulher olhou para cima, tentando identificar quem viera vê-la, por mais que o reconhecesse pela voz. Ele segurou-lhe pela cintura e a ajudou a sentar na cama, ajoelhando-se, por fim, em frente dela.
Suplicou-lhe que não se deixasse derrotar. Mas era tarde. Ela continuava a tossir sangue e a lamuriar-se pelo seu fim. Teve uma crise, caiu ao chão. Chorava sem soluçar. Sua voz já se perdera e só podia se comunicar por sussurros. O acompanhante a ergueu pelas costas para perto de seu rosto e colocou-se a ouvi-la. Cantarolava, mesmo que com a voz saturada e com os lábios molhados de sangue, o final da mesma ópera de minutos antes. Ao finalizar o verso final, sorriu e adormeceu.

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